segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Uso de Cannabis na Gestação e Amamentação: Riscos, Evidências e Recomendações Clínicas



1. Introdução

O uso de Cannabis durante a gestação e lactação é uma temática que desperta crescente atenção nas esferas clínica e regulatória, especialmente diante do aumento global da legalização da Cannabis medicinal e da percepção equivocada de sua segurança. Embora os canabinoides — como o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) — tenham propriedades terapêuticas reconhecidas, seu uso durante a gravidez e o aleitamento deve ser cuidadosamente avaliado à luz dos riscos potenciais ao desenvolvimento fetal e neonatal.

Nesse contexto, é fundamental que ginecologistas, obstetras, pediatras, neonatologistas e demais profissionais da saúde materno-infantil estejam bem informados e capacitados para orientar gestantes e lactantes com base nas melhores evidências científicas disponíveis, respeitando princípios éticos, de precaução e de segurança.


2. Riscos do Uso de Cannabis na Gestação e Amamentação

Organizações médicas de renome internacional, como o American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), a Academy of Breastfeeding Medicine (ABM) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), recomendam fortemente a evitação do uso de Cannabis durante a gestação e a amamentação, exceto em circunstâncias excepcionais e sob rigoroso acompanhamento clínico [1].

2.1 Exposição Fetal e Neonatal aos Canabinoides

  • Atravessamento Transplacentário: O THC é lipofílico e atravessa facilmente a barreira placentária, podendo interferir com a formação de circuitos neurológicos em desenvolvimento. O sistema endocanabinoide fetal — envolvido em processos como proliferação neural, migração celular e sinaptogênese — é particularmente sensível a alterações exógenas [2].

  • Excreção no Leite Materno: O THC e outros canabinoides também são detectáveis no leite humano por períodos prolongados após a exposição materna. Estudos sugerem que a concentração de THC no leite materno pode ser de 6 a 8 vezes maior do que no plasma materno, com potencial para bioacumulação no lactente [3].

2.2 Potenciais Efeitos Adversos no Desenvolvimento Fetal e Infantil

Estudos observacionais e coortes longitudinais têm demonstrado associações entre a exposição pré e perinatal à Cannabis e múltiplos desfechos clínicos adversos:

  • Baixo Peso ao Nascer e Prematuridade: Há aumento do risco relativo para restrição de crescimento intrauterino (RCIU), parto prematuro (<37 semanas) e baixo peso ao nascer (<2.500g), mesmo após o controle para fatores confundidores como tabagismo e etilismo [4].

  • Déficits no Neurodesenvolvimento: A exposição intrauterina ao THC está associada a alterações persistentes em domínios como:

    • Atenção e controle inibitório (déficit de atenção, impulsividade);

    • Memória de trabalho e funções executivas;

    • Desenvolvimento da linguagem e desempenho escolar [5,6].

  • Alterações Comportamentais e Psiquiátricas: Crianças expostas podem apresentar maior prevalência de transtornos de conduta, ansiedade, e sintomas depressivos na infância e adolescência.

  • Outros desfechos potenciais: Embora a evidência seja menos robusta, há relatos de associações com:

    • Anomalias congênitas (particularmente cardiovasculares e do tubo neural);

    • Aumento do risco de morte súbita do lactente (SIDS);

    • Distúrbios respiratórios neonatais [7].


3. Recomendações para Profissionais da Saúde Materno-Infantil

3.1 Abordagem Clínica Baseada em Evidências

É fundamental que os profissionais de saúde adotem uma abordagem acolhedora, livre de julgamentos e cientificamente embasada, para identificar, aconselhar e monitorar gestantes e lactantes que façam uso de Cannabis — seja recreativa, seja medicinal.

Principais recomendações:
  • Triagem e História Clínica Detalhada: Incluir perguntas específicas sobre uso de substâncias (inclusive fitoterápicos e Cannabis) nas consultas pré-natais e pediátricas.

  • Aconselhamento Informativo: Explicar que mesmo formas vaporizadas ou óleos com baixo teor de THC podem ter efeitos neurotóxicos. Destacar a ausência de dados robustos de segurança para qualquer forma de Cannabis durante a gestação e amamentação.

  • Substituição por Terapias Seguras: Para condições como náuseas graves, insônia, dor ou ansiedade, optar por intervenções não farmacológicas ou farmacológicas com perfil de segurança conhecido, como a doxilamina para hiperêmese gravídica ou psicoterapia para sintomas leves de ansiedade.

3.2 Situações de Exceção e Monitoramento Multidisciplinar

  • Em casos extremamente raros, como epilepsia refratária grave em gestantes que já faziam uso de Cannabis medicinal antes da concepção, o uso contínuo deve ser cuidadosamente ponderado por uma equipe multidisciplinar (neurologia, obstetrícia de alto risco, pediatria e farmacologia clínica).

  • Nesses casos, é imprescindível o monitoramento fetal e neonatal intensivo, além de documentação clínica rigorosa quanto à justificativa terapêutica, avaliação dos riscos e consentimento informado.


4. Oportunidade de Educação no Dia da Gestante (15 de Agosto)

O Dia da Gestante, comemorado em 15 de agosto, é uma oportunidade estratégica para reforçar a importância do cuidado pré-natal qualificado e da educação em saúde baseada em evidências. O tema do uso de substâncias — incluindo Cannabis — deve ser abordado de forma empática, clara e acessível, promovendo um diálogo franco sobre os riscos e incentivando decisões informadas.

Profissionais de saúde podem aproveitar a data para realizar ações educativas em ambulatórios, maternidades e campanhas comunitárias, conscientizando sobre os efeitos adversos do uso de Cannabis na gestação e lactação, além de orientar sobre alternativas terapêuticas seguras.


5. Conclusão

Embora a Cannabis medicinal represente um avanço terapêutico importante em várias áreas da medicina, sua utilização durante a gestação e a lactação permanece contraindicada na maioria das situações clínicas, devido aos potenciais efeitos deletérios sobre o desenvolvimento fetal e infantil. A prioridade deve ser sempre a segurança do binômio mãe-bebê.

Cabe aos profissionais da saúde materno-infantil o papel de educar, prevenir e orientar com base em evidências, promovendo cuidados centrados na paciente e garantindo que quaisquer decisões sobre o uso de Cannabis nesse período sejam tomadas com a máxima responsabilidade ética e científica.


6. Referências Bibliográficas

[1] American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG). (2017). Marijuana Use During Pregnancy and Lactation. Committee Opinion No. 722. https://www.acog.org/clinical/clinical-guidance/committee-opinion/articles/2017/10/marijuana-use-during-pregnancy-and-lactation

[2] Metz, T. D., & Ryan, S. A. (2020). Marijuana Use in Pregnancy and Lactation: A Review of the Latest Evidence. Obstetrics & Gynecology, 135(5), 1158-1168. https://journals.lww.com/greenjournal/Abstract/2020/05000/Marijuana_Use_in_Pregnancy_and_Lactation__A_Review.21.aspx

[3] Djordjevic, J., & Djordjevic, M. (2019). Cannabis use in pregnancy and lactation: a systematic review. Journal of Perinatal Medicine, 47(9), 927-935. https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/jpm-2019-0110/html

[4] Ryan, S. A., & Metz, T. D. (2020). Marijuana Use During Pregnancy and Lactation: ACOG Committee Opinion, Number 722. Obstetrics & Gynecology, 135(5), 1158-1168. https://journals.lww.com/greenjournal/Abstract/2020/05000/Marijuana_Use_in_Pregnancy_and_Lactation__A_Review.21.aspx

[5] Conner, S. N., & St. Clair, C. M. (2020). Cannabis Use in Pregnancy and Lactation. Clinics in Perinatology, 47(2), 247-2261. https://www.perinatal.theclinics.com/article/S0095-5108(20)30006-0/fulltext

[6] Goldschmidt, L., Richardson, G. A., Willford, W. O., & Day, N. L. (2000). Prenatal marijuana exposure and intelligence in 10-year-old children. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry, 39(10), 1222-1228. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11026189/

[7] Committee on Obstetric Practice. (2017). Marijuana Use During Pregnancy and Lactation. Obstetrics & Gynecology, 130(4), e205-e209. https://journals.lww.com/greenjournal/Fulltext/2017/10000/Marijuana_Use_During_Pregnancy_and_Lactation.38.aspx

[8] Stockings, E., Zagrabbe, K., & Ghasemi, M. (2018). Cannabis and cannabinoids for the treatment of medical conditions: a systematic review. Medical Journal of Australia, 208(10), 455-461. 

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