A Cannabis sativa L., especialmente seus fitocanabinoides mais estudados — tetra-hidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD) —, têm demonstrado eficácia terapêutica em diversas condições clínicas, sendo cada vez mais prescritos no Brasil. Entretanto, como ocorre com qualquer fitoterápico ou fármaco, o uso da cannabis medicinal não está isento de interações, inclusive com outros compostos de origem vegetal, que também são metabolizados por vias enzimáticas compartilhadas.
Metabolismo e Vias Enzimáticas Relevantes
Os canabinoides, em particular o THC e o CBD, são metabolizados predominantemente pelas enzimas do citocromo P450 (CYP450), especialmente:
-
CYP3A4
-
CYP2C9
-
CYP2C19
Além disso, o CBD pode inibir significativamente várias dessas enzimas, alterando o metabolismo de outros compostos, inclusive fitoterápicos, que dependem dessas vias para sua biotransformação.
Interações Conhecidas e Potenciais com Fitoterápicos
1. Valeriana (Valeriana officinalis)
-
Efeito potencial: A valeriana possui propriedades sedativas devido à interação com receptores GABA.
-
Interação com cannabis: Quando combinada com CBD ou THC, pode ocorrer um efeito sedativo aditivo, potencializando sonolência, letargia e alteração da coordenação motora.
-
Recomendação clínica: Monitorar sinais de sedação excessiva, especialmente em idosos ou pacientes que operam máquinas ou conduzem veículos.
2. Erva-de-São-João (Hypericum perforatum)
-
Efeito potencial: Indutor do CYP3A4 e da glicoproteína-P.
-
Interação com cannabis: Pode reduzir a biodisponibilidade tanto do THC quanto do CBD, já que acelera o metabolismo hepático dos canabinoides. Isso pode reduzir a eficácia terapêutica da cannabis.
-
Recomendação clínica: Deve-se evitar a combinação ou monitorar atentamente os níveis plasmáticos de canabinoides e a resposta clínica do paciente.
3. Kava-kava (Piper methysticum)
-
Efeito potencial: Potente depressor do SNC e hepatotóxico em alguns casos.
-
Interação com cannabis: Pode haver sinergismo depressor do sistema nervoso central, além de potencial aumento da hepatotoxicidade, especialmente com o uso concomitante de CBD, que também é metabolizado pelo fígado.
-
Recomendação clínica: Evitar a combinação ou usar com extrema cautela, avaliando função hepática periodicamente.
4. Ginkgo biloba
-
Efeito potencial: Inibidor leve da agregação plaquetária.
-
Interação com cannabis: O CBD e o THC podem apresentar efeitos antiagregantes leves. O uso combinado pode aumentar o risco de sangramentos, especialmente em pacientes que já usam anticoagulantes ou antiagregantes plaquetários.
-
Recomendação clínica: Monitorar sinais de sangramento e considerar ajustes em terapias anticoagulantes.
5. Ginseng (Panax ginseng)
-
Efeito potencial: Modulador imune, adaptógeno e leve estimulante do SNC.
-
Interação com cannabis: Pode antagonizar os efeitos sedativos da cannabis ou do CBD, além de competir por vias enzimáticas como CYP3A4, potencializando ou reduzindo a biodisponibilidade dos canabinoides, dependendo da dose e do tempo de uso.
-
Recomendação clínica: Monitorar eficácia terapêutica e ajustar doses conforme necessário.
6. Curcumina (Curcuma longa)
-
Efeito potencial: Anti-inflamatório, antioxidante e inibidor do CYP3A4.
-
Interação com cannabis: Pode aumentar os níveis plasmáticos de CBD e THC ao inibir o metabolismo hepático, potencializando seus efeitos terapêuticos e colaterais.
-
Recomendação clínica: Monitorar sinais de toxicidade canabinoide, como sedação excessiva, hipotensão ou alterações cognitivas.
7. Camomila (Matricaria recutita)
-
Efeito potencial: Leve sedativo, modulador GABA.
-
Interação com cannabis: Pode potencializar os efeitos ansiolíticos e sedativos do CBD, além de contribuir para hipotensão postural em combinação.
-
Recomendação clínica: Uso seguro em doses usuais, mas pacientes devem ser alertados sobre o aumento da sonolência.
8. Mulungu (Erythrina mulungu)
-
Efeito potencial: Atividade ansiolítica e sedativa por ação sobre receptores GABA.
-
Interação com cannabis: Pode potencializar os efeitos ansiolíticos e sedativos do CBD, levando a sonolência, confusão mental e lentidão psicomotora.
-
Recomendação clínica: Usar com cautela, especialmente em pacientes que necessitam manter desempenho cognitivo elevado.
Considerações Farmacodinâmicas
Além das interações enzimáticas, existe a possibilidade de sinergia ou antagonismo farmacodinâmico. Fitoterápicos com efeitos sedativos, ansiolíticos, anti-inflamatórios ou neuroprotetores podem potencializar os efeitos da cannabis medicinal, mas também podem mascarar ou sobrepor sintomas adversos.
Efeitos sobre o Sistema Endocanabinoide
Alguns fitoterápicos, mesmo que indiretamente, podem modular o sistema endocanabinoide, o que pode alterar a resposta à cannabis. Por exemplo:
-
Beta-cariofileno (presente no cravo-da-índia, pimenta preta) atua como agonista seletivo do receptor CB2, potencializando ações anti-inflamatórias da cannabis.
-
Quercetina (presente em própolis, cebola, maçã) pode modular enzimas endocanabinoides e influenciar na resposta clínica ao CBD e THC.
Conclusão
O uso concomitante de cannabis medicinal com outros fitoterápicos é comum em práticas clínicas integrativas no Brasil. Embora muitos pacientes percebam benefícios combinados, as interações podem alterar significativamente tanto a eficácia quanto o perfil de segurança da cannabis.
É essencial:
-
Realizar anamnese detalhada, incluindo fitoterápicos;
-
Monitorar enzimas hepáticas, níveis plasmáticos, e efeitos clínicos;
-
Manter vigilância sobre sinais de sedação, hipotensão, alterações cognitivas e hepatotoxicidade.
O uso racional e supervisionado dessas combinações pode oferecer benefícios clínicos robustos, desde que realizado com base em evidências e sob estrito acompanhamento profissional.