segunda-feira, 7 de julho de 2025

O Uso da Cannabis Medicinal no Tratamento do Transtorno Opositor Desafiador (TOD): Uma Revisão das Evidências dos Últimos 10 Anos



Resumo

O Transtorno Opositor Desafiador (TOD) é uma condição neuropsiquiátrica que afeta crianças e adolescentes, caracterizada por um padrão persistente de comportamento desafiador, desobediente e hostil. O tratamento convencional envolve abordagens psicoterapêuticas e, em alguns casos, farmacoterapia, que pode apresentar limitações e efeitos adversos. Nos últimos anos, a cannabis medicinal, especialmente o canabidiol (CBD), tem emergido como uma área de interesse para o tratamento de diversos transtornos psiquiátricos. Esta revisão tem como objetivo analisar as evidências científicas dos últimos 10 anos sobre o uso da cannabis medicinal no tratamento do TOD, focando em sua eficácia, segurança e nas lacunas de pesquisa existentes. Embora a pesquisa direta sobre TOD seja limitada, evidências de estudos com transtornos comórbidos, como o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), sugerem um potencial terapêutico dos canabinoides na modulação de sintomas como irritabilidade, agressão e hiperatividade, que são centrais no TOD. Conclui-se que, apesar dos indicativos promissores, são necessários mais ensaios clínicos randomizados e controlados para estabelecer a eficácia e a segurança da cannabis medicinal como uma opção terapêutica para o TOD.

1. Introdução

O Transtorno Opositor Desafiador (TOD) é definido pelo Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como um padrão recorrente de comportamento negativista, desafiador, desobediente e hostil para com figuras de autoridade, com duração de pelo menos seis meses. A prevalência do TOD é estimada entre 1% e 11%, com uma média de 3,3% [1]. A condição pode causar prejuízos significativos no funcionamento social, acadêmico e familiar da criança ou adolescente, além de aumentar o risco para o desenvolvimento de outros transtornos, como o Transtorno de Conduta e transtornos de ansiedade e humor na vida adulta [2].
O tratamento padrão para o TOD baseia-se em intervenções psicossociais, como treinamento de pais em manejo de comportamento, terapia individual e familiar, e programas de treinamento de habilidades sociais para a criança. A farmacoterapia não é considerada um tratamento de primeira linha, mas pode ser utilizada para tratar comorbidades ou sintomas-alvo graves, como agressividade. No entanto, os medicamentos utilizados, como estimulantes, antipsicóticos e estabilizadores de humor, podem estar associados a efeitos colaterais significativos [3].
Neste contexto, a busca por novas abordagens terapêuticas tem levado ao interesse crescente na cannabis medicinal. A planta Cannabis sativa contém mais de 100 canabinoides, sendo o Δ9-tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) os mais estudados. O sistema endocanabinoide (SEC), presente no corpo humano, desempenha um papel fundamental na regulação de processos como humor, sono, apetite, dor e resposta ao estresse, e a interação dos canabinoides com este sistema é a base para seu potencial terapêutico [4].
Esta revisão tem como objetivo consolidar e analisar as pesquisas científicas publicadas nos últimos 10 anos sobre o uso da cannabis medicinal no tratamento do TOD, com foco em estudos clínicos, revisões sistemáticas e pesquisas em transtornos comórbidos que compartilham sintomas com o TOD.

2. Mecanismo de Ação dos Canabinoides e o Sistema Endocanabinoide

O sistema endocanabinoide (SEC) é um complexo sistema de sinalização lipídica presente em mamíferos, que desempenha um papel crucial na manutenção da homeostase fisiológica e cognitiva. Ele é composto por ligantes endógenos (endocanabinoides), como a anandamida (AEA) e o 2-araquidonoilglicerol (2-AG), receptores canabinoides (principalmente CB1 e CB2), e enzimas responsáveis pela síntese e degradação desses endocanabinoides [5].
Os receptores CB1 são abundantemente expressos no sistema nervoso central (SNC), especialmente em áreas envolvidas na regulação do humor, memória, cognição, dor e movimento, como o córtex, hipocampo, gânglios da base e cerebelo. Os receptores CB2 são encontrados predominantemente em células do sistema imunológico e em tecidos periféricos, onde modulam a inflamação e a resposta imune [6].
Os fitocanabinoides, como o THC e o CBD, interagem com o SEC de diferentes maneiras. O THC é um agonista parcial dos receptores CB1 e CB2, o que explica seus efeitos psicoativos e terapêuticos. Já o CBD possui uma farmacologia mais complexa; ele tem baixa afinidade pelos receptores CB1 e CB2, mas pode modular a atividade do SEC indiretamente, por exemplo, inibindo a recaptação e a degradação de endocanabinoides, aumentando assim seus níveis sinápticos. Além disso, o CBD interage com outros alvos moleculares, como receptores de serotonina (5-HT1A), receptores vaniloides (TRPV1) e receptores de adenosina, o que contribui para seus efeitos ansiolíticos, antidepressivos, anti-inflamatórios e neuroprotetores [7, 8].
No contexto do TOD, a disfunção do SEC pode estar implicada na desregulação emocional, impulsividade e agressividade. A modulação do SEC por canabinoides pode, teoricamente, ajudar a restaurar o equilíbrio nesses sistemas, aliviando os sintomas comportamentais. Por exemplo, a interação do CBD com o receptor 5-HT1A pode explicar seus efeitos ansiolíticos e na regulação do humor, que são relevantes para a redução da irritabilidade e da reatividade emocional observadas no TOD [9].

3. Atualizações da Pesquisa (Últimos 10 Anos) sobre Cannabis Medicinal no Tratamento do TOD

A pesquisa sobre o uso da cannabis medicinal no tratamento de transtornos neuropsiquiátricos tem crescido significativamente na última década. Embora estudos específicos e ensaios clínicos randomizados focados exclusivamente no TOD ainda sejam limitados, há evidências emergentes e observações clínicas que sugerem um potencial benefício, especialmente em sintomas comportamentais que se sobrepõem ao TOD, como irritabilidade, agressão e hiperatividade, frequentemente observados em comorbidades como o TEA e o TDAH.

3.1. Achados em Transtornos Relacionados e Sintomas Comuns:

Irritabilidade e Agressão: Vários estudos, muitos deles focados em crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista (TEA), têm investigado o papel do CBD na redução da irritabilidade e comportamentos agressivos. Pesquisas recentes (e.g., estudos de 2024 e 2025 sobre CBD para irritabilidade e agressão em ASD) indicam que o CBD pode ser útil na modulação desses sintomas [10, 11, 12]. Dado que a irritabilidade é um sintoma central do TOD, esses achados são promissores e sugerem uma área para futuras investigações diretas no TOD.
Comorbidades (TDAH e TEA): O TOD frequentemente coexiste com TDAH e TEA. Estudos sobre cannabis medicinal nessas condições, embora não diretamente sobre TOD, fornecem insights relevantes. Por exemplo, pesquisas sobre o uso de canabinoides em TDAH e TEA têm explorado a melhora em sintomas como hiperatividade, impulsividade e problemas de atenção, que podem contribuir para os comportamentos desafiadores do TOD. Um estudo de prova de conceito (2021) explorou a eficácia potencial da cannabis medicinal em participantes com TDAH e TOD, utilizando métodos mistos, indicando a necessidade de mais pesquisas nesta área [13, 14, 15].
Segurança e Tolerabilidade: Estudos em populações pediátricas, principalmente em epilepsia refratária e TEA, têm demonstrado que o CBD é geralmente bem tolerado, com efeitos colaterais leves a moderados, como sonolência, diarreia e diminuição do apetite [16, 17]. A segurança do uso de canabinoides em crianças é uma preocupação primordial, e a pesquisa contínua é fundamental para estabelecer perfis de segurança robustos para diferentes condições e formulações.

3.2. Lacunas na Pesquisa e Necessidade de Ensaios Clínicos Específicos:

Apesar dos resultados promissores em sintomas relacionados e comorbidades, a literatura científica carece de ensaios clínicos randomizados e controlados especificamente desenhados para avaliar a eficácia e segurança da cannabis medicinal no tratamento primário do TOD. A maioria das evidências atuais é baseada em estudos observacionais, relatos de caso ou pesquisas focadas em outras condições com sintomas sobrepostos. Há uma clara necessidade de:
1.Ensaios Clínicos Randomizados e Controlados (RCTs): Para determinar a eficácia e segurança da cannabis medicinal especificamente para o TOD.
2.Padronização de Dosagens e Formulações: A falta de padronização dificulta a comparação entre estudos e a replicação de resultados.
3.Estudos de Longo Prazo: Para avaliar os efeitos a longo prazo do uso de canabinoides em crianças e adolescentes com TOD.

4. Conclusão

Nos últimos 10 anos, o interesse e a pesquisa sobre a cannabis medicinal para condições neuropsiquiátricas em crianças e adolescentes têm aumentado. Embora não haja ainda um corpo robusto de evidências de ensaios clínicos randomizados especificamente para o Transtorno Opositor Desafiador (TOD), os achados em comorbidades como o TEA e o TDAH, e em sintomas como irritabilidade e agressão, sugerem um potencial terapêutico. É crucial que futuras pesquisas se concentrem em estudos controlados e de longo prazo para estabelecer diretrizes claras para o uso da cannabis medicinal no manejo do TOD.

5. Referências Bibliográficas

[1] American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing.
[2] Nock, M. K., Kazdin, A. E., & Kessler, R. C. (2007). Psychiatric disorders in children and adolescents: an epidemiologic perspective. Biological Psychiatry, 61(9), 1026-1032. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17475300/
[3] Farmer, C. A., & Loeber, R. (2018). Treatment of oppositional defiant disorder. In: Handbook of Clinical Child and Adolescent Psychology (pp. 1-20). Springer, Cham. https://link.springer.com/referenceworkentry/10.1007/978-3-319-92932-9_100-1
[4] Pacher, P., & Kunos, G. (2013). Modulating the endocannabinoid system in human health and disease: successes and failures. FEBS Journal, 280(9), 1918-1941. https://febs.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/febs.12152
[5] Lu, H. C., & Mackie, K. (2016). An introduction to the endogenous cannabinoid system. Biological Psychiatry, 79(7), 516-525. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26698193/
[6] Howlett, A. C., Barth, F., Bonner, T. I., Cabral, G., Casellas, P., Devane, W. A., ... & Pertwee, R. G. (2002). International Union of Pharmacology. XXVII. Classification of cannabinoid receptors. Pharmacological Reviews, 54(2), 161-202. https://pharmrev.aspetjournals.org/content/54/2/161.long
[7] Ibeas Bih, C., Chen, T., Taylor, L., Tegenge, M. A., & Vaughan, C. W. (2015). Molecular targets of cannabidiol in the nervous system: a review. Neurotherapeutics, 12(3), 699-710. https://link.springer.com/article/10.1007/s13311-015-0377-3
[8] Crippa, J. A. S., Guimarães, F. S., Campos, A. C., & Zuardi, A. W. (2018). Translational investigation of the therapeutic potential of cannabidiol (CBD): toward a new class of anxiolytic, antidepressant, and antipsychotic drugs. Translational Psychiatry, 8(1), 1-11. https://www.nature.com/articles/s41398-018-0109-y
[9] Blessing, E. M., Steenkamp, M. M., Manzanares, J., & Marmar, C. R. (2015). Cannabidiol as a potential treatment for anxiety disorders. Neurotherapeutics, 12(4), 825-836. https://link.springer.com/article/10.1007/s13311-015-0387-1
[10] Cannabidiol for treatment of Irritability and Aggressive Behavior in Children and Adolescents with Autism Spectrum Disorder: background and methods of the cannabidiol study in children with autism spectrum disorder (CASCADA) trial. (2025). International Journal of Clinical Trials, 12(1), 828. https://www.ijclinicaltrials.com/index.php/ijct/article/view/828
[11] Cannabidiol (CBD) Treatment for Severe Problem Behaviors in Autistic Boys: A Randomized Clinical Trial. (2025). Journal of Autism and Developmental Disorders. https://link.springer.com/article/10.1007/s10803-025-06884-y
[12] Cannabidiol for treatment of Irritability and Aggressive Behavior in Children and Adolescents with Autism Spectrum Disorder. (2024). medRxiv. https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2024.08.12.24311894v1.full-text
[13] Pharmacokinetics and Perceptions of Children and Young Adults Using Cannabis for ADHD and ODD: A Mixed-Methods Proof-of-Concept Study. (2021). PubMed. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34661540/
[14] Efficacy of cannabinoids in neurodevelopmental and neuropsychiatric disorders among children and adolescents: a systematic review. (2023). SpringerLink. https://link.springer.com/article/10.1007/s00787-023-02169-w
[15] Medical cannabis for children: Evidence and recommendations. (2023). Canadian Paediatric Society. https://cps.ca/en/documents/position/medical-cannabis-for-children-evidence-and-recommendations
[16] Uses of cannabinoids to treat behavioural problems in children and adolescents. (2021). The Royal Australian College of General Practitioners. https://www1.racgp.org.au/ajgp/2021/june/uses-of-cannabinoids-to-treat-behavioural-problems
[17] Efficacy and safety of medical cannabinoids in children. (2021). Nature.

O Uso da Cannabis Medicinal no Tratamento do Transtorno Opositor Desafiador (TOD): Uma Revisão das Evidências dos Últimos 10 Anos

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